Leopoldo Cavalcante nasceu em Fortaleza (CE) e é editor da Aboio. Todo o resto é circunstancial.
“ – O Bem vai vencer o Mal no fim, não é, Vovó?
Nunca vou esquecer a reação dela: riu.”
Vampiro – Cristhiano Aguiar
I.
Lembro de uma história da minha avó sobre meu bisavô e Lampião. Envolvia perfume, trapaça e, ao final, a piedade do cangaceiro. Minha avó, entretanto, não contava com sisudez o causo. Ela empostava a voz de uma forma meio afetada e repetia a mesma lojinha, os mesmos vidrinhos e a mesma figura mitológica com problema de vista. Mesmo que ela achasse que nenhum neto se importava, alguns prestavam atenção.
Com a idade, fui entendendo que cada família nordestina tinha uma narrativa que envolvia alguém com o cangaço. Só que algumas não eram tão engraçadinhas quanto as da minha avó.
II.
Nos últimos anos, minhas melhores leituras foram de terror. Não esqueço da figura infantil descascando em um casarão paulistano que Joca Reiners Terron faz viver em A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves, tampouco da distopia-pé-no-chão dos Kentukis, de Samanta Schweblin. No meu coração, entretanto, tem um lugar especial As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enríquez. O jogo entre o pop gringo fazendo morada nas casas latino-americanas e as ruelas assombradas pelos fantasmas reais (desigualdade, ausência do estado, assassinato infantil); a transparência do fio fino que sustenta a realidade e o poder místico do sobrenatural; a afetação argentina na linguagem e seus ecos narrativos fantásticos. E eu poderia falar mais, trazer exemplos, apontar semelhanças diretas entre meninas da geração perdida de 90 cometendo atrocidades ao som de Led Zeppelin (Os anos intoxicados: Mariana Enríquez) e jovens incendiários (Firestarter: Cristhiano Aguiar) e falar da veia apocalíptica e niilista que parece unir a geração que não é a minha, mas sim a que nasceu no final das ditaduras e pegou a transição para a democracia (a minha nasceu no começo da democracia e parece pegar a transição para a ditadura). Mas trazer Mariana Enríquez e Samanta Schweblin para falar de Gótico Nordestino já é batido.
III.
Minha avó tinha outras histórias. Uma que ela gostava de contar era na época de faculdade, quando ela, mais velha, depois de ter servido como assistente social por anos, foi cursar direito. Os olhos dela brilhavam ao falar da janela que ela (30 e poucos) e as amigas (mais jovens, sem dúvidas) tinham que pular quando algum rapaz alertava da chegada de policiais buscando alunos e professores dissidentes.
Ela nunca me falou se fora de fato dissidente – mas hoje sabemos que pouco importaria. Não precisava de muito pra dar merda e ela tava grávida.
IV.
A ambientação de Gótico Nordestino caminha majoritariamente pelo claustrofóbico.
Com muita precisão, em As onças, sentimos aflição com os olhos felinos observando cada um dos habitantes. As portas cerradas, o caminho impedido, a infância interrompida.
Em Anna e seus insetos, a protagonista enclausurada em seu apartamento alucinando as paredes cobertas de asas reforça não só uma alienação da classe-média-com-pinta-de-artista do Brasil inteiro, mas também o estranhamento psicossomático que acometeu a tantos durante o isolamento social da covid-19.
Já Tecidos no jardim temos um parque que poderia ser o cenário mais iluminado – e a luz entendida como positiva – sendo transfigurado pelo foco no asqueroso, no aracnídeo, a tal ponto que a brancura da paina não traz alento, mas sim o puro desconforto de prisão tecida no vão do dia.
Até Firestarter, com seu terreno aberto, se pauta pelos corpos em repouso dentro de carros em movimento à procura do fogo.
Até o respiro vem pelo sufoco.
V.
Minha mãe chamava meus vizinhos de cima de vampirinhos. A movimentação na casa acontecia sempre depois das 23h. Eram passos de gente, de lulus da pomerânia e o estrondo de panelas batendo tarde da noite. Meus pais acordavam cedo. Eu também. Nunca o barulho foi tão ruim a ponto de atrapalhar nossa rotina, mas apelidar e categorizar era uma forma de diferenciar o certo do errado. E dormir tarde era errado.
Eles eram um casal de médicos dermatologistas, os vampirinhos, conhecidos por deixar os pacientes prostrados por mais de cinco horas na sala de espera do consultório.
Da consulta, lembro do pai tecendo comentários contra o sistema público de saúde e o modelo de gestão econômica do país.
Do convívio, eles se mudaram pra serra pra se protegerem da profecia de um guru da região que vaticinou uma onda gigante devorando Fortaleza.
VI.
Um dos pontos positivos de Gótico Nordestino é a quebra de estereótipos geográficos. O sol não conforta, a praia está amaldiçoada, o urbanismo do centro de Recife é igual a qualquer outro grande centro do país.
Por algum motivo, essa geografia me toca mais.
VII.
G. é amigo dos meus pais e um grande arquiteto que no tempo livre se interessa por ufologia. Há mais de 15 anos ele guarda uma pasta lotada de vídeos de aparições de OVNIs no computador. Certa noite, a gente tava no interior do Ceará, em um terreno meio distante da civilização, e ele resolveu palestrar sobre alienígenas. Fez um discurso apaixonadamente trêmulo e mostrou a coletânea de vídeos salvos entre pastas de projetos arquitetônicos. Eu era muito jovem e estava tarde. A noite não estava estrelada e deitado na rede vi alçar voo um disco de dentro do mar.
Alguns meses atrás escutei um podcast da Vox com o professor Alexander Wendt, da universidade estadual de Ohio, sobre OVNIs. Em algum momento ele fala que os alienígenas já estão na terra e nos últimos anos eles apareceram espaçadamente, em situações aleatórias, para nos acostumarmos com a presença deles e que as gravações, em sua maioria, são verdadeiras, mas que não precisamos nos preocupar porque eles são, ao que tudo indica, bons.
VIII.
Entre desertos cibernéticos, vampiros na feirinha da cidade, aranhas em parques e onças na sala de jantar, Gótico Nordestino conversa com possibilidades interpretativas de existir na esquisitice daquela região, de onde viemos, eu e Cristhiano, quem não conheço o suficiente como autor para tecer considerações mais sóbria e cientificamente literárias, tendo, eu e ele, que nos contentarmos com algumas outras pinceladas menos precisas de avós, cangaceiros, ditaduras, vampiros, tsunamis e alienígenas – sendo estes últimos terrores, atrevo a apontar, bem cearenses, e que me acompanham mesmo eu estando distante do nordeste; mesmo eu estando aqui na beira de uma praia sudestina, sob a lua sem graça de mais um carnaval perdido.
Da redação: este é o primeiro Diário de Leitura de Leopoldo Cavalcante. Sem qualquer periodicidade, estes híbridos de ficção e ensaio aparecerão na Aboio.
Foto de Luísa Machado.